Cacá, o neonatologista Carlos Correa, já esteve conosco no ano passado no II Encontro para a Promoção, Proteção e Apoio à Amamentação, conduzindo uma roda de conversa com pais. Naquele momento, ele nos deu uma entrevista sobre amamentação e conflitos de interesse. Agora, ele repete a dose, discutindo conosco o tema da SMAM de 2017: construindo alianças sem conflitos de interesses. Ele também estará no III Encontro para a Promoção, Proteção e Apoio à Amamentação, que acontecerá de 1 a 3 de agosto na Faculdade de Saúde Pública da USP. E vale lembrar que, no dia 2, teremos o Seminário “Aleitamento materno: Por que proteger? Como proteger?”. Inscreva-se gratuitamente para garantir a sua vaga.
Viviane: O tema da Semana Mundial de Aleitamento Materno de 2017 é “Promovendo Alianças sem Conflitos de Interesses”. Como você observa a atuação dos profissionais da saúde no que se refere ao aleitamento materno? Como mudar esse cenário?
Cacá: Promover alianças sem conflito de interesses é uma séria e grande dificuldade. Sinto que a maior parte dos profissionais de saúde não percebem qual a sua real importância e qual o impacto das próprias ações sobre o aleitamento materno. Lembro-me que, no começo da minha vida profissional como neonatologista, conversava com a equipe sobre oferecer fórmula para bebês no alojamento conjunto na situação de um bebê que chora muito e a fase de colostro das mulheres que, como sabemos , é um fluido de pequeno volume e grande riqueza. Caso esse bebê chore muito e a solução dada pela equipe é dar um pouco de leite artificial, que lição essa mulher levava para casa? Numa próxima situação de choro, qual seria a solução ensinada para esta mulher? Sempre foi uma conversa difícil, pois parecia que deixar esse bebê chorar era falta de boa vontade, mas ali já se estava contribuindo para fortalecer a cultura da fórmula e para enfraquecer a credibilidade do aleitamento materno, principalmente porque este leite era chamado pelo seu nome comercial. Ao invés de buscar soluções pacificadoras para o choro do bebê, geralmente a solução era ofertar fórmula. Mais difícil ainda eram e continuam sendo os patrocínios de congressos e de material de conteúdo técnico e/ou didático em pediatria e neonatologia por indústrias que produzem fórmulas lácteas, bicos e mamadeiras. Como o público em geral não confiaria numa indústria cujo nome esta associado à Sociedade de Pediatria como sendo alguém que esta qualificada para bem cuidar dos nossos filhos? Como entender o discurso para o leite materno e, ao mesmo tempo, o apelo comercial dessas empresas? Fica, no minimo, uma dupla mensagem. As parcerias pró-infância e também pró-aleitamento ficam minadas por uma mensagem subliminar de que essas indústrias contribuem positivamente para o bem-estar das crianças sempre, e não em situações especiais (quando houvesse necessidade).
Fico pensando aqui, não como diretor de entidade de classe medica ou de outros profissionais de saúde ligados a infância, mas como um profissional atuante nessa área. Falar sobre a importância do aleitamento materno, mas ter um discurso que depois de certa idade (em geral 1 ano) esse aleitamento é desnecessário e que só é indicado pelo Ministério da Saúde e pela OMS para populações de baixa renda e que não podem oferecer outra coisa melhor por não terem condições financeiras…. Isso já é desqualificar aleitamento como sendo precioso e insubstituível. Tenho a impressão de que a maioria destes profissionais não se percebem compactuando com estas indústrias e em situação de conflito de interesses. Se as sociedades de classe passam a mensagem que não há conflito de interesses nessas alianças, fica mais difícil que o profissional se perceba vivendo este conflito quando vai a um congresso patrocinado por estas indústrias ou quando fala algo como “depois de um ano, não precisa”.
Viviane: Como um pediatra constrói alianças e parcerias sem conflitos de interesse em tempos onde congressos médicos e, muitas vezes, publicações científicas são financiadas pela indústria de alimentos?
Cacá: Pois é. Não é nada fácil construir parcerias sem conflitos de interesse. Sempre fico na dúvida em se tratando de empresas financiando ações se, em algum nível, este conflito não ira aparecer. Na minha experiência, conseguimos auxílio de empresas que agregam valor social a produtos que não irão competir direta ou indiretamente com aleitamento. Algumas empresas que trabalham com produtos ligados à infância que não contribuam para desmame também é uma possibilidade. Mas, na maioria dos momentos que vivi a necessidade de coletar algum dinheiro, como na construção do banco de leite do Hospital de Cotia, quem bancou foi a própria equipe de funcionários do hospital através de rifas.
Viviane: A formação do profissional da saúde, incluindo a do médico, é muito mais centrada em procedimentos complexos voltados a doenças do que à promoção da saúde. Como romper esse modelo e termos profissionais realmente aptos a apoiarem o aleitamento materno?
A medicina esta inserida numa sociedade que vive este conflito. O natural e o industrializado competem o tempo inteiro, principalmente quando se fala em alimentação. Entendo esta pergunta num contexto pessoal, pois iniciei minha carreira trabalhando em UTI Neonatal e hoje atendo em consultório. Não tenho dúvida de que meus colegas de Faculdade que exercem a medicina com procedimentos cirúrgicos e uso de equipamentos sofisticados ganham muito mais que eu. Acho que a nossa sociedade não aprendeu a dar valor a estratégias simples e de grande impacto como melhorar indicadores de aleitamento materno como forma de transformação social e de qualidade de vida. Mas acredito que estamos melhorando e muito. A preocupação com resgatar o parto natural e a amamentação como princípios básicos importantes para o inicio da vida já é uma realidade e vem crescendo muito. Mas temos ainda um grande caminho pela frente. Todos sabemos que é mais fácil e mais barato prevenir que remediar danos causados a saúde. Nosso trabalho, de todos nos promotores do aleitamento materno nas várias áreas de atuação, tem sido levantar essa bandeira e propagar essa verdade para toda a população. E acredito que tenhamos conseguido deixar claro as vantagens e os benefícios do aleitamento materno. Sei que ainda existem muitas mulheres que se sentem incapazes de viver esse aleitamento de qualidade e prazer. Foram muitos anos de trabalho dessas indústrias do leite desacreditando a capacidade das mulheres nutrirem emocional e fisicamente seus filhos. Mas acredito que estamos no caminho certo e que cada vez mais possamos desfazer essa situação.