O Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos foi lançado no dia 13 de novembro e o que mais circula é a informação de que o Ministério da Saúde está indicando leite de vaca para os bebês. Se você leu o Guia, provavelmente viu que não é bem assim. Vou sintetizar alguns conteúdos sobre o leite.
A recomendação unânime é a de que o aleitamento materno ocorra até, pelo menos, os dois anos de vida, sendo exclusivo até os 6 meses. O Guia usa dezenas de páginas tratando sobre os motivos para se amamentar e, inclusive, sobre como vencer diversos dos desafios da amamentação.
Caso a mulher não possa ou não queira amamentar, a opção mais adequada, segundo o Guia, é a fórmula. Porém, no Brasil, mais da metade das famílias não usa fórmulas com bebês desmamados (ou que recebem complemento), especialmente por questões financeiras. Infelizmente, é uma realidade. Para minimizar os riscos, o Guia coloca que o leite de vaca, caso haja necessidade de uso, precisa ser diluído até os quatro meses. O material, entretanto, alerta para os prejuízos da utilização do leite de vaca (ele também alerta para os problemas associados ao uso da fórmula). Dentro desse contexto, para os bebês que usam fórmula, a introdução alimentar precisa acontecer aos 6 meses, porém, caso o bebê recebe leite de vaca, seria necessário antecipar a oferta de outros alimentos para os quatro meses. Nem de longe, é a situação ideal, mas são direcionamentos quando essa situação é a realidade. Só para pontuar, a única diferença que o documento lançado em novembro traz com relação ao anterior é a indicação da fórmula que, na primeira versão, sequer existia.
Outro ponto que o Guia traz é quando que, no caso dos bebês que usam fórmula, ela se faz necessário. É comum falarmos que ela deve ser usada no primeiro ano de vida, mas o Guia indica nos primeiros 9 meses, ou seja, após isso, caso o bebê esteja desmamado (ou com complemento), a partir dessa idade, a fórmula pode ser substituída pelo leite de vaca integral, algo que, segundo o Guia, não estaria associado a maiores riscos à saúde. Esse, talvez, seja o ponto mais polêmico. As autoras do Guia colocam que essa foi uma decisão contra a maioria dos países, mas com respaldos científicos. A partir disso, foi considerado incoerente o Ministério da Saúde chancelar a utilização de uma fórmula (com custo mais elevado, além de outros impactos ambientais) de forma coletiva.
O terceiro elemento relacionado ao leite diz respeito à utilização dele ou de seus derivados em preparações culinárias desde o início da realização da alimentação complementar, por exemplo, em um purê. Isso vem sendo justificado pela recomendação do bebê conseguir compartilhar da mesma alimentação da família. Há também a possibilidade da diminuição do risco de alergia.
Não se refere ao leite, mas também foi alvo de discordância a recomendação da utilização de sal, com moderação, desde o início da alimentação complementar. Isso também não é nenhuma novidade e somente foi mantido, tal como constava no Guia anterior. Aliás, o Guia atual é mais específico ao tentar quantificar essa moderação ao sugerir que uma família com 4 pessoas deve usar, no máximo, 1kg de sal a cada 2,5 meses.
E então? Podemos confiar no Guia? Primeiro, precisamos criar o hábito de lê-lo por completo para entender seus fundamentos e justificativas. Numa das primeiras oficinas para a sua elaboração, eu fui uma das pessoas que defendeu a necessidade de se constar a fórmula como a alternativa na ausência/insuficiência da amamentação. E lá está a fórmula no documento final mas, tal como foi explicado, ela não é a realidade para a maioria das famílias. É o ideal? Não! Mas também o ideal seria que todos bebês estivessem recebendo leite materno, certo? E assim faria sentido ignorar que não precisamos pensar na alimentação dos bebês que não recebem o melhor alimento? O documento é bem claro sobre os prejuízos relacionados ao desmame e isso precisa ser compartilhado com a família de forma bem clara, tanto quanto precisamos ter condições de investigar, em uma boa anamnese, sobre a situação financeira dessa família para adquirir os alimentos. Quantas famílias mentem para o profissional e, ao chegar em casa, tomam decisões (muitas vezes, erradas) por conta própria, como diluir demais a fórmula ou usar espessantes e açúcar no leite?
Quanto ao usar o leite de vaca, também no caso das crianças que não recebem somente leite materno, a partir dos 9 meses, é algo difícil de desconstruir. Sempre trago que o leite é o principal alimento até os 12 meses, certo? Por isso que nomeamos o período de alimentação complementar. Isso é a máxima quando estamos falando em aleitamento materno. Quando a criança recebe a fórmula, ela não terá um desenvolvimento diferente. O que eu quero dizer é que, não necessariamente, ela vai estar bem adaptada aos alimentos sólidos muito antes dos 12 meses. Pela minha prática durante os atendimentos, alguns bebês estarão realmente bem adaptados aos 9 meses e, assim, o leite de vaca (ou fórmula) poderia ser visto como mais um alimento dentre tantos outros que o bebê consome, e não mais como o alimento base. Porém, como nutricionista, tenho que ter muito cuidado para não atrapalhar a alimentação complementar, tentando acelerar algo para qual o bebê ainda não esteja pronto. Assim, apesar de ainda não ter me deparado com essa situação, dependendo da forma como esse bebê se apresenta, seria preferível segurar por mais algumas semanas a fórmula em vez de correr o risco do bebê ser forçado a aceitar maior quantidade de alimentos. Mas, se o bebê estiver super envolvido com as refeições e, infelizmente, estiver desmamado, será que realmente é problemático diminuir o volume dos lácteos e fazer a transição para o leite integral?
Vejam que, até o momento, somente falei dos bebês que não estão na situação ideal. Mas quando o Guia fala para usar lácteos nas preparações dos alimentos para qualquer criança desde o início da oferta de alimentos. Do ponto de vista da alergia, realmente não faz sentido atrasar a exposição ao leite. Porém, temos que tomar cuidado com o risco de anemia, dado que refeições ricas em ferro mas que também possuem maior teor de cálcio podem dificultar a absorção do primeiro nutriente. Então, precisamos ter muita cautela para o leite não ser usado rotineiramente como um ingrediente culinário. Porém, eventualmente, isso não vai significar expor o bebê a um risco.
Para terminar, e o sal? Não vai sobrecarregar os rins? Quem já passou em atendimento ou nos cursos comigo, por tratar do BLW, fica inviável falar no verdadeiro compartilhamento de refeições preparando comida sem sal. Quando estamos falando individualmente ou com poucas pessoas, fica mais fácil deixar claro o que significa usar “sal com moderação”. O grande problema é termos um bebê comendo o alimento preparado por um brasileiro “padrão”, que usa quase três vezes mais sal do que a recomendação. Mas uma quantidade adequada pode fazer parte da cota que o bebê é capaz de receber.
Enfim, o Guia foi um documento muito esperado e que vejo de uma forma muito positiva ter tantas pessoas discutindo seu conteúdo. É sinal de que estamos nos apropriando dele com certeza temos que fazer isso. É muito complexo discutir uso de fórmulas e de leite de vaca em um cenário onde a indústria de alimentos age não somente de forma direta às famílias e aos profissionais, mais também são responsáveis por produzir conteúdos “científicos” e, inclusive, influenciar o cenário político. Então, precisamos ter cautela, mas, de qualquer forma, também precisamos nos apropriar dos embasamentos científicos que foram utilizados para que o Guia fosse construído.
Em breve, trarei mais um post sobre o Guia, para tratar das recomendações relacionadas à consistência dos alimentos e a forma das refeições serem oferecidas.