Muitas vezes, ouço pessoas que se referem a um determinado adulto que não aceita bem os alimentos como sendo alguém que tem um paladar infantil. Você já ouviu ou usou esse termo? Isso já me remete a pensar que ter um paladar infantil significa ser alguém com determinadas características alimentares: baixa aceitação para os sabores azedos e amargos, além de uma preferência aumentada pelo doce e pela gordura. A existência desse paladar infantil pode ser reforçada quando nos deparamos com os menus específicos às crianças que vêm recheados de salsicha, hambúrguer e batata frita, além da monotonia do macarrão com molho de tomate ou branco.
Essa informação não é em vão. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, de 2015, 60,8% das crianças com menos de dois anos de idade comem biscoitos, bolachas e bolos. Além disso, 32,3% tomam refrigerantes ou suco artificial.
Agora, quero propor a reflexão do que está por trás desse cenário. Afinal, crianças, em geral, alimentam-se realmente de forma inadequada.
O ponto crucial para ser pensado é: quanto desse paladar é inerente da própria criança e o quanto ele é modulado pelo ambiente?
Sabemos que o ser humano, naturalmente, possui uma preferência por alguns sabores. Açúcar, sal e gordura são substâncias altamente palatáveis e, por isso, nos conquistam muito mais do que um prato de agrião ou uma fatia de abacate. Esse nosso paladar foi importantíssimo para uma questão de sobrevivência, levando o homem a se afastar daquilo que poderia ser venenoso na natureza. Voltando aos tempos atuais, a criança, quando começa a ter contato com o açúcar no suco ou com a fritura, por exemplo, já adquire uma tendência a preferir tais sabores.
Porém, até experimentá-los, essa criança é mais receptiva aos sabores menos fáceis de serem preferidos. Quem já não se surpreendeu com um bebê, mesmo estranhando o sabor, insiste em lamber um limão? E quantas não são as famílias que preparam os alimentos do bebê totalmente sem sal e sequer observam problemas de aceitação por parte dos pequenos?
O que eu quero trazer aqui é que nós nascemos mais receptivos à experimentação. Enquanto não temos contato com o doce e o salgado, por exemplo, comemos sem grandes dificuldades os alimentos amargos e azedos (e sem sal e sem açúcar). Conforme crescemos, algo nos leva a ter esse paladar transformado.
Uma primeira mudança que ocorre é com relação ao nosso ambiente. Muitos adultos chegam a ter dó de ver uma criança tomando um suco sem açúcar ou não comendo um pedaço de chocolate. Quem nunca ouviu o famoso “‘tadinho’… deixa comer só uma vez”? Sem perceber, nós vamos criando as oportunidades para que uma criança (ou mesmo um bebê) conheça os sabores mais sedutores. Além disso, damos um valor simbólico a determinados alimentos, como doces e salgadinhos, ao utilizarmos como um prêmio ou uma compensação.
Para complicar um pouco mais, mesmo que o núcleo familiar mais próximo, ou seja, mães e pais, tente cuidar da alimentação da criança, o assédio da sociedade é brutal. Outras pessoas, como amigos e vizinhos, oferecem aleatoriamente alimentos às crianças sem a menor cerimônia. Quantos motoristas de Uber já não ofereceram uma balinha para o seu filho?
A publicidade faz também faz uma competição desleal. As propagandas extremamente sedutoras e difundidas em diferentes espaços entram no imaginário dos pequenos fazendo-os desejarem o consumo. Sei que, nessa situação, muitos falam que cabe aos pais educarem e colocarem os limites. Concordo que isso é papel da família. Mas seria muito mais fácil para uma família falar “não” se a sessão de guloseimas do mercado não fosse tão gigantesca, colorida e acessível às ligeiras mãozinhas. É um saco ter que ficar explicando para a minha filha de cinco anos dezenas de vezes os motivos que ela não pode comer doces a todo o momento se tem doces a toda esquina e muitos dos seus amigos comem doces mais do que diariamente. Por isso que reforço: é uma competição desleal! No cansaço, quantos de nós não cedemos?
Mas existe uma outra questão que leva à tal mudança de paladar infantil: o medo da criança não comer. Quando se inicia a introdução de outros alimentos, além do leite, a tensão domina a família. Será que o bebê vai comer? Quanto que ele tem que comer? A maioria dos pais parece acreditar que seus filhos comem quantidades insuficientes, ou seja, menos do que precisam. As comparações com outras crianças somente ampliam o tamanho dessa pressão que também é piorada pela cobrança do pediatra. “Não ganhou muito peso nesse mês“, “precisa comer mais“, “o leite está atrapalhando no apetite“… Parece que existe uma estratégia mágica para fazer com que bebês abram suas bocas e comam. Poucos param para questionar se, de fato, o bebê não estaria comendo a quantidade que realmente o satisfaça. Sempre achamos que ele poderia comer mais e mais e mais. Aí, talvez exista sim a tal estratégia mágica, mas que futuramente, vai se traduzir em armadilha: mudar a forma de oferecer o alimento ou mudar o alimento. Nesse segundo componente, sobre mudar o alimento, a família percebe que, se colocar um pouco de achocolatado no leite, a criança bebe mais rápido. Percebe também que, quando oferece um biscoito de maisena, a criança não fica sem comer à tarde (o que às vezes acontece quando é oferecida a fruta). Também percebe que a criança dá pulinhos de alegria quando vê a batata frita e dourada à sua frente.
Ver a criança comer faz com que mães e pais respirem aliviados. Mas aí sua criança acabou de ganhar o rótulo do tal “paladar infantil”. Vai ser aquela que só vai comer bem se tiver aquilo que seja mais sedutor ao paladar. E, como no nosso meio social, a diversidade de alimentos sedutores ao paladar é muito maior do que a de frutas, legumes e verduras, por exemplo, a criança fica cada vez mais condicionada aos alimentos açucarados, gordurosos ou salgados. Em paralelo, cada vez mais estranha aquilo que não contém tanto sal, açúcar ou gordura, pois são alimentos que ficam distantes da sua realidade e do que se espera da alimentação de uma criança. Vira uma bola de neve que talvez se transforme quando essa criança crescer. Eu digo “talvez” porque o que temos de informações relacionadas ao padrão alimentar de adultos não é muito animador. Comemos cada vez menos alimentos in natura e muitos alimentos extremamente processados.
Então, da próxima vez em que você ouvir falar que alguém tem um paladar infantil, pense que, na verdade, essa pessoa só tem o paladar fruto daquilo que proporcionamos para uma criança assim que ela começa a se alimentar. Como seria esse paladar em um cenário sem tantos alimentos rotulados como “infantis”, mas tão inadequados à criança??? Fica a questão para você!