Há algumas semanas, ficamos sabendo da notícia envolvendo o chef britânico Jamie Oliver, que foi anunciado como novo garoto-propaganda da Sadia, uma das maiores empresas de alimentos ultraprocessados. Rolou surpresa, susto, decepção… Mas, enfim, ele é adulto e pode escolher atrelar seu nome à indústria (mesmo sendo incoerente a partir de todo o discurso que ele nos trazia em relação à valorização de alimentos mais naturais).
Agora, uma nova surpresa! Jamie e Sadia estão unidos para implantar um programa de educação alimentar e nutricional intitulado Saber Alimenta em diversas escolas do Brasil, nos moldes da “revolução” que ele trouxe no Reino Unido e nos Estados Unidos.
A proposta, segundo a página da Sadia, consiste em um projeto pedagógico que ensina as crianças a serem protagonistas na mudança dos hábitos alimentares dentro de casa e cria uma relação mais próxima delas com os alimentos saudáveis. O projeto será desenvolvido no colégio paulistano Anglo XXI, que é particular, e em 20 escolas públicas de Santa Catarina. Diferente de qualquer outra tipo de consultoria na área de alimentação e nutrição, em vez das escolas desembolsarem dinheiro para as ações educativas, elas receberão um apoio financeiro! E a Sadia não promoverá seus produtos nem divulgará sua marca nos materiais (exceto o famoso “S” no “Saber”). Quanta bondade né? Será mesmo?
Quando eu vejo um projeto pedagógico destinado a crianças sendo pautado pela indústria, isso não soa bem! Não se trata da empresa não ter interesse em promover seus produtos ali naquele momento. Ela pode falar de protagonismo, de alimentação orgânica, de saúde… Trata-se da promoção da sua imagem! E isso é altamente lucrativo. Que consideração teremos por alguém que ajuda a cuidar da saúde daquilo que temos como mais preciosos: nossos filhos? Se não fosse algo tão caro, a Sadia não pagaria para entrar nessas escolas.
Quer um exemplo de como isso é um super investimento? Há quanto tempo a Nestlé fez uma ação bombástica colocando-se como o melhor alimento para as crianças (inclusive com relação ao leite materno)? Trinta, quarenta anos? E hoje, com publicidade controlada e mesmo com informações mais do que comprovadas de que isso é mentira, quantos de nós, incluindo profissionais da saúde, ainda não optam pelo Ninho em vez de qualquer outro leite?
Aqui em cima está uma das imagens de Jamie atuando nas nossas escolas. Crianças fascinadas diante de um ídolo internacional super carismático e capaz de fazer a maioria ali comer legumes e verduras como mágica! A ação está fadada ao sucesso e vai ser comentada e divulgada sem Sadia ou Jamie fazer qualquer esforço. Missão cumprida! Mensagem garantida de que a empresa que faz nuggets é do bem!
Então, vamos lá! Segundo o art. 37, § 2,° do Código de Defesa do Consumidor e a resolução 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), é vedada e considerada abusiva a comunicação mercadológica direcionada à criança. Já segundo o Programa Nacional de Alimentação Escolar, as ações de educação alimentar e nutricional devem ocorrer sem conflito de interesses. O que é conflito de interesse? Quando pode existir um interesse maior além do que o explicitado entre duas partes. Algo como um juiz estar julgando uma mulher por roubo mas ser o esposo dela! É previsto que o setor privado pode financiar o setor público! Mas uma coisa é ter a alimentação escolar sendo apoiada por uma empresa de automóveis. Outra coisa é ser patrocinada por quem vende comida industrializada (com um forte apelo infantil e à família).
Mas a alimentação escolar teria recursos para fazer uma ação como esta? Não há capital e, tampouco, nutricionistas para isso! Nunca conseguiríamos pagar Jamie Oliver para estar conosco! Mas penso que educação alimentar e nutricional não precisa ter alto custo e também não é atividade privativa do nutricionista. Quando pensamos em educação de crianças, a alimentação deveria estar embutida no projeto pedagógico e o assunto deveria estar dentro e fora das salas de aulas, desenvolvido por aqueles que são referência aos alunos, ou seja, pelos professores (com o devido apoio do nutricionista e de outros profissionais). Essa é uma realidade distante da nossas escolas? Para muitas, sim (mas existem vários exemplos de sucesso Brasil afora), mas em algum momento é importante dar o primeiro passo. Se você é pai ou mãe, questione a sua escola, sugira, participe! Se você é educador, fale sobre alimentação nas suas atividades!
Saiba que o Idec e outras entidades da sociedade civil divulgaram uma carta aberta declarando repúdio à parceria do chef Jamie Oliver com a Sadia, gigante brasileira de alimentos ultraprocessados. Um abaixo-assinado está em divulgação na net na tentativa de frear essa iniciativa. Participe!